ARUS FEMIA


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© Arlindo Camacho

       ARUS FEMIA

ARUS FEMIA, cuja tradução do crioulo guineense para português é “arroz fêmea”, inspira-se nas mulheres guineenses cujos cabelos viriam a tornar-se celeiros de sabedoria ancestral — humana, botânica, espiritual. No Novo Mundo as mulheres agitaram as cabeças e dos seus cabelos libertaram-se as sementes que fecundaram a terra.

O espectáculo estreou em 2025, em março no Teatro Campo Alegre (Porto, Portugal), em abril no Centro de Arte Moderna Gulbenkian (Lisboa, Portugal), em maio no Teatro do Bairro (Lisboa, Portugal), e no mesmo mês, no Centro Cultural Franco Bissau Guineense (Bissau, Guiné-Bissau), no âmbito da Iª Bienal de Arte e Cultura de Bissau da Fundação MoAC Biss. 



© João Octávio Peixoto

ARUS FEMIA

Dedico este espectáculo à Ota, do rio Cacheu,
ao Andan, das pastagens de Mansoa,
e às comunidades rurais da Guiné-Bissau.

Agradeço infinitamente ao Miguel de Barros, ao Erikson Mendonça, à Ruguiato Baldé, ao Mário Sá, à Nair Noémia Costa, ao Idrissa Baldé e a todos os amigos da Tiniguena, e à brilhante equipa ARUS FEMIA — Xullaji, Vânia Doutel Vaz, Neusa Trovoada, Camila Reis, Carolina Caramelo, Cláudia Sevivas, António Castelo, Lentim Nhabaly, Albertinho Monteiro, Dionezia Cá, Urbício Vieira, Aoaní, Izária Sá, Ulé Baldé, Jorge Gonçalves, Mariana Desidério, Arlindo Camacho.

Há quatrocentos anos, um número incontável de guineenses foi sequestrado do seu território, transportado em porões de navios e escravizado nas Américas. Face a tal provação, as mulheres conceberam a mais potente das estratégias: esconder sementes de arroz africano (Oryza glaberrima) nas suas tranças! Em solo desconhecido, tiveram a mestria de fazer germinar e proliferar essas sementes. Hoje, o arroz negro cobre milhares de hectares no Novo Mundo. 

Aquelas mulheres carregaram nos seus corpos filosofias espirituais que veiculavam códigos e condutas ancestrais. Sob condições extremamente hostis, com este gesto audaz, as mulheres guineenses preservaram o vínculo com as suas origens e fizeram-no perdurar no tempo.



© João Octávio Peixoto

Parte do processo de investigação para o projecto ARUS FEMIA teve lugar no interior da Guiné-Bissau, onde se pratica a orizicultura tradicional, sobretudo em água salgada. Localmente, estes arrozais são denominados de bolanhas de água salgada. As bolanhas são arquitetadas em carreiras simétricas separadas por diques minuciosamente construídos, de modo a garantir um equilíbrio preciso entre a água salgada trazida pelo mar e a água doce trazida pelas chuvas — condição essencial para que o arroz possa fecundar. Porém, este equilíbrio há muito que se tem vindo a fragilizar. A combinação de um território insular de baixa altitude — composto por mais de 80 ilhas — e um clima que actualmente oscila entre períodos de intensa pluviosidade e secas prolongadas, torna a Guiné-Bissau um dos países mais vulneráveis às alterações climáticas, apesar do seu ínfimo contributo para a emissão de gases com efeito de estufa (à escala global, o continente africano é responsável por cerca de 4% dessas emissões). As comunidades que habitam nas zonas costeiras — que constituem mais de 70% da população guineense — não têm e não terão como dar continuidade à sua principal atividade de subsistência: a agricultura familiar e comunitária. Como sobreviverá a Guiné-Bissau e os cerca de 2 milhões de guineenses? Deslocar? Migrar? Mas como, se a livre mobilidade é privilégio de apenas alguns — daqueles cujos passaportes são emitidos por países que contrabandeiam gases com efeito de estufa e praticam a biopirataria?

Os cânticos, a música, a dança, as histórias e as lendas sobre os ancestrais e sobre os irans (espíritos/ divindades) que soam nas bolanhas, os cerimoniais que antecedem o plantio e a colheita, são portais para refirmar a esperança. Uma esperança que se performa continuamente, tal como neste espectáculo evocativo daquelas mulheres cujo poder fecundativo se alastra para além dos seus úteros e cujos cabelos são celeiros carregados de sabedoria ancestral — humana, botânica e espiritual; um espectáculo que apresenta um mundo quase totalmente imerso em água — talvez uma Guiné-Bissau implantada num futuro demasiado próximo? Talvez o Benim, o Senegal ou um país insular do Pacífico? Talvez Portugal, os Países Baixos ou os EUA? Um mundo confluente de tempos — os passados, os presentes, os que estão para chegar e os imemoriais também — onde os seus habitantes — os performers — buscam incessantemente modos de transe que lhes permita alterar o corpo e a voz para que possam existir em água. 

ARUS FEMIA, uma inexorável taticografia levada a cabo por uma comunidade de performers ou irans ou kankurans (espíritos guardiães dos rituais de iniciação) ou humanfíbios, um espectáculo ou um sortilégio que se cumpre em solenidade, onde cenários distópicos são miragens obsoletas. 

Aqui, é preciso afundar, para lembrar, é preciso lembrar, para depois esquecer.

Zia Soares 


Direção, encenação, texto Zia Soares
Interpretação Albertinho Monteiro, Aoaní, Dionezia Cá, Izária Sá, Ulé Baldé, Urbício Vieira, Xullaji
Música, Design de Som Xullaji
Movimento coreográfico Vânia Doutel Vaz
Cenografia Neusa Trovoada
Design de iluminação Carolina Caramelo;
Vídeo António Castelo, Lentim Nhabaly
Vídeo design Cláudia Sevivas
Ilustração e animação 2D Camila Reis
Figurinos Neusa Trovoada
Tranças Mariana Desidério
Tradução para kriol Miguel de Barros
Vozes off Erikson Mendonça, Mamadu Alimo Djaló, Miguel de Barros, Ruguiato Baldé
Vozes off e Nhinguilins off Comunidade de Tabato
Engenheiro de som Jorge Gonçalves
Direção de produção Camila Reis

Apoio à pesquisa TINIGUENA
Construção do cenário Marco Peixoto, João Fortuna, Silvério Martinho Cabral, João Pinho Apoio à cenografia: Mariana Frazão
Assistência Idrissa Djau Júnior, Jorsildo Bandjaqui,Malado Djaló, Mário Correia, Rosi Fernandes, Salvador Júnior, Sidney Vieira
Produção Sowing_arts
Co-produção Netos de Bandim, Teatro Municipal do Porto, STATION service for contemporary dance

Apoio Câmara Municipal de Lagos/ Centro Cultural de Lagos, Câmara Municipal de Lisboa, Casa da Dança, Fundação Calouste Gulbenkian, GROWTH, Largo Residências/ Jardins da Bombarda, O Rumo do Fumo, Polo Cultural Gaivotas Boavista, RDP África, Teatro do Bairro Projeto financiado por República Portuguesa - Cultura I DGARTES – Direção Geral das Artes Zia Soares é uma artista apoiada pela apap – FEMINIST FUTURES

Agradecimentos António Quintino, Auditório Camões, Comunidade de Angruman, Comunidade de Cabedu, Comunidade de Calaque, Comunidade de Contuboel, Comunidade de Cumuda, Comunidade de Djobel, Comunidade de Elia, Comunidade de Mansaba Sutu, Comunidade de Saridjai, Comunidade de Sintchã Sutu, Comunidade de Suzana, Comunidade de Tabato, Cooperativa Agropecuária de Jovens Quadros, Federação KAFO – Banco de Sementes Tradicionais de Arroz, Joana Quintino, Karim Djara, Livígia Monteiro, Mamadu Alimo Djaló, Maria Reis, Nakasadarte RAMIRO NAKA & Afro Gumbe Show, Nú Barreto, Salvador Bandjaqui, Vladimir Bidam Quadé.


Publicações Público/ Ípsilon
BANTUMEN/ CAM Gulbenkian
Bienal MoAC Biss
SIC Notícias
RTP