FANUN RUIN 





© Susana Paiva


                FANUN RUIN foi concebida no âmbito da programação paralela da exposição Europa Oxalá, que reflete sobre o passado colonial e o seu efeito no presente, e prolonga o debate em torno da memória, da identidade e do luto.

        A performance de Zia Soares que tem como ponto de partida o seu encontro com a coleção de 35 crânios humanos dispostos num armário no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Em 1882 na parte oriental da ilha de Timor têm lugar os ritos de caça de cabeças, exortados pelos invasores portugueses. De entre os decapitados, 35 crânios foram usurpados e desterrados do seu território de origem, Timor.



© Susana Paiva

FANUN RUIN
abrir o lugar do luto

       Há uma casa que habita em mim.
       Sei das cobras, vermelhas, que sempre guardam a casa e só se deixam ver quando há perigo. Na outra noite sonhei que uma delas repousava nos meus ombros. Antes que a visse, pressenti-a. E como antecipasse qualquer reação, silenciosa, esgueirou o seu rosto para junto do meu. Fixou-me. E eu a ela.1
       Atravesso salas, corredores, os meus olhos passam agilmente em revista todos os aglomerados de ossos mais ou menos compartimentados, catalogados, arquivados: não, não, não…
Não, não, não são estes.
Não, não, não…
Não, não, também não…
Estou parada, mas o meu corpo, todo o meu corpo, teima em pesar-me apenas para um lado, obrigando-me a virar a cabeça num gesto rápido, preciso, como se em busca de equilíbrio. É então que os vejo, mesmo antes dos meus olhos. Agora estou diante de vós e nunca mais saio daqui.
E é isto noite após noite: atravesso salas, corredores, os meus olhos passam agilmente em revista todos os aglomerados de ossos mais ou menos compartimentados, catalogados, arquivados: não, não, não…
Não, não, não são estes.
Não, não, não…
Não, não, também não…
É então que os vejo, mesmo antes dos meus olhos. Agora estou diante de vós e nunca mais saio daqui.
       Precisava de acabar com aquilo, precisava de acabar com a angústia que ia ocupando os meus sonhos e pesadelos e pensamentos.
Então invento o FANUN RUIN — que se traduz do tétum [língua nacional de Timor-Leste] para português, Chamar Ossos — uma performance onde expelir o confronto com a morte sem rosto, onde me apaziguar. A mim…
Então chego a mim, também é sobre mim, eu, convergência extemporânea onde Timor Lorosa´e se encontra com Angola para depois derivar em Portugal. Ponho na voz a minha vida:

       “Timor. Em 1959 um grupo de homens timorenses revolta-se contra o regime colonial. São presos e desterrados – durante vários dias viajam no vapor “Índia” para um destino que desconhecem. Um desses homens é o meu pai.
Angola, 1960… Um grupo de homens com rostos desfocados. A fotografia mais antiga que tenho é a do meu pai com os companheiros na cadeia do Bié. No Bié, o meu pai conhece a minha mãe.
Portugal. 1882. Uma coleção de crânios usurpados. Na parte oriental da ilha de Timor têm lugar os ritos de caça de cabeças, exortados pelos invasores portugueses. De entre os decapitados, 35 crânios foram desterrados para Portugal.
Jazem num armário no Departamento de Antropologia da Universidade
de Coimbra.”2

De volta ao necrotério.
Enunciam-se as perguntas:
Como eram os rostos dos decepados?
Quais os seus nomes?
Quando retornam os ossos usurpados?
Quem os espera?
Quem ainda se lembra?
Quem quer esquecer?

       “No que diz respeito aos crânios de Timor, e ao contrário do que tem sido defendido por alguns activistas (...) e investigadores, a historiadora mostra reservas em se proceder à restituição sem que haja pedidos de devolução por parte do próprio país.
“Em abstracto poderia concordar, mas isso levanta problemas. Restituir a quem? Em que moldes? É preciso ter uma noção prática; não basta meter estes espólios numa caixa e enviá-la. A UC [Universidade de Coimbra] ainda não recebeu nenhum pedido”, nota Luísa Trindade. “O ponto principal deve ser o diálogo e a partilha.” 3

       Afinal, quando alguém se apodera de algo que não é seu, usurpa portanto, e tem verdadeira intenção de se retractar, deve ou não dar o primeiro passo? E se sim, no caso da coleção de crânios timorenses, os insepultos cativos em Portugal há mais de 140 anos, quando tenciona o Governo Português, e a Universidade de Coimbra, dar esse passo, iniciando “o diálogo e a partilha” com o Governo Timorense?
Afinal, volvidos mais de 140 anos, quanto tempo mais necessita o Governo Português e a Universidade de Coimbra, para “ter uma noção prática” de como processar o retorno dos crânios?
       Afinal, como está a ser tratada ou para quando se prevê alguma partilha pública sobre o desenvolvimento dos processos de inventariação dos restos mortais e dos artefactos pilhados dos países anteriormente colonizados por Portugal?



© Antonio Castelo

Escavo, folheio, desenterro o mal concretizado, conspurco-me uma vez mais com as certezas mortas do arquivo fundado em violência.
É imperativo rasgar as fronteiras da História!
É urgente desfigurar a arquitetura do arquivo!
Perante o estratégico apagamento contínuo das narrativas que contrariam a univocidade do colonizador, pode ser muito sedutor, e por vezes enganador, tentar preencher esse espaço tornado lacuna: tentar criar carne para os ossos: urdir a partir do nada, do vazio, buscar apaziguamento onde aparentemente não o há.
Como reparar a violência, senão com a coragem de a expor, produzindo e provocando configurações outras dela mesma, e ainda, sem submeter os insepultos a um novo trauma?

       É preciso performar a ferida, repetir sem tréguas a partitura do soçobro até que se torne obsoleta:
“Eu sei. Sei da catana no pescoço. Sei do joelho no pescoço. Sei da bota na cara. Sei do derradeiro suspiro quando não se consegue respirar.“4

       Não, não é sobre reescrever a História, mas sobre escrevê-la, protagonizando-a e performando-a, aceitando antecipadamente que ela, ainda, permanecerá inacabada. Trata-se de abrir o lugar do luto, do cerimonial, onde a incomensurável violência da estropiação, da violação, da desumanização dá lugar ao silêncio e só o sussurro pode irromper qual veneno que se propaga vagarosamente e se enraíza no inadiável pulsar da ulteridade.
Não, não me detenho a historiar a Guerra de Laleia5 : Emancipo-me dela: Actuo.

“Hau iha imi nia oin.
Hau la sai daar hosi nee too ita nia rain hatudu imi nia oin.
Manu kokoreek ona, asu la harii ona
Ita nia Uma Lulik hein imi.”

Estou diante de vós.
Nunca mais saio daqui até que a nossa terra revele os vossos rostos.
O galo já cantou e o cão não ladra mais.
A nossa Uma Lulik 6 [Casa Sagrada] vos espera.
Zia Soares



1
Soares, Z. (2022), FANUN RUIN
2 Soares, Z. (2022), FANUN RUIN
3 Duarte, M. (2023, 21 de junho), Restituição de bens culturais, três debates nacionais para descolonizar os museus, Público
4 Soares, Z. (2022), FANUN RUIN
5 Foi durante a Guerra de Laleia, que ocorreu em Timor (à época território colonizado por Portugal), entre 1878 e 1881, que guerreiros timorenses ao serviço do governo colonial português liderado por Hugo de Lacerda decapitaram timorenses, tidos como rebeldes, pertencentes a uma comunidade que vivia nas montanhas onde se refugiou o rei de Laleia (reino situado no litoral a leste da capital de Timor-Leste, Díli), D. Manuel Salvador dos Remédios, considerado líder dos opositores à missão e ao governo português.
6 Uma Lulik é a casa sagrada e tradicional timorense, o espaço central da cultura e da identidade do povo maubere. Cada aldeia tem a sua Uma Lulik onde a família armazena as relíquias sagradas dos seus antepassados. Numa Uma Lulik - reservatório de memórias e saberes ancestrais - realizam-se os rituais que permitem o encontro entre os mortos e os vivos.




© Susana Paiva


Autoria, direção, interpretação: Zia Soares
Direção de arte: Neusa Trovoada
Cocriação de vídeos: António Castelo
Música, design de som: Xullaji
Cocriação de movimento: Lucília Raimundo
Iluminação: Mafalda Oliveira
Elenco de vídeo: Agostinho de Araújo, Aoaní Salvaterra, Domingos Soares, Fátima Guterres, Lídia Araújo,
Lucília Raimundo, Manuel de Araújo, Priscila Soares

Assistência à cenografia: Carlos Trovoada, Nig d’Alva
Fotografia: António Castelo, Susana Paiva
Assistência geral: Aoaní d’Alva, Mariana Frazão
Cabelos: Elizabete Manuel, Zu Pires
Maquilhagem: Ana Roma
Produção: Fundação Calouste Gulbenkian, Sowing_arts
Apoio: Centro Cultural da Malaposta, Polo Cultural Gaivotas Boavista

Agradecimentos: Domingos Soares e Priscila Soares, Agostinho de Araújo, Ana Alves, António Soares Nunes,
Bruno Sena Martins, José Amaral, Luís Costa, Manuel de Araújo


Zia Soares é uma artista apoiada pela apap – Feminist Futures, um projeto cofinanciado pelo Programa 
Europa Criativa da União Europeia